Células
Um vento gelado soprou tão forte naquela terça-feira, que fez os tampões caírem. Estavam expostos. O lado direito do peito de cada cidadão não estava mais coberto e todos conseguiam ver o buraco circular que atravessava o corpo da parte posterior até a inferior.
Há muito tempo, o governo havia estabelecido uma política de proibição de sentimentos e passou a recolher corações de bebês, logo após seus nascimentos. O motivo era simples: sentir prejudicava a economia, gerava gastos exorbitantes aos cofres públicos e, o mais importante, o coração superava a razão, levando a irracionalidades que rompiam a coesão social.
Houve um referendo e a população votou “SIM”. Depois que os buracos passaram a ser comuns, diversos acessórios surgiram no campo da moda, alguns personalizavam seus tampões, outros apenas cobriam para não chamarem tanta atenção. Todavia, nada agradava ou desagradava mais ninguém, nada revoltava, nem mesmo perturbava os cidadãos daquela “utopia de sucesso”, como chamava o prefeito.
Naquela terça, ninguém gritou ou se assustou ao ver tantos seres humanos mutilados. Apenas buscaram seus tampões caídos no chão e cobriram a perfuração profunda que carregavam, seguiram para o trabalho e depois para suas famílias no fim do expediente.
Sim, famílias continuavam a existir não por amor ou afeto, mas por convenção. Casais com rendas, gostos, cotidianos e estilos parecidos se uniam para dividir os gastos de um lar, não ficarem sozinhos quando estivessem doentes e, se ambos fossem requisitados, tinham filhos para satisfazer as necessidades econômicas da nação. Ninguém se rebelava com tudo isso, afinal, fazia sentido, era racional.
Sem sentir, tudo que ampliasse o bem-estar de todos era uma boa política. O problema é que, sem qualquer sensação, o bem-estar se tornou sinônimo de consumo. Quantos mais pessoas tinham acesso a bens, mais “feliz” estava a sociedade, pena que ela já não era mais capaz de sentir felicidade.
Até mesmo os governantes haviam se submetido à cardio remoção e o império da razão parecia infinito. O último indivíduo a sentir havia se matado. Ninguém confrontava o status quo. O ser humano virou máquina.

